O NATAL DOS NOSSOS DESENCONTROS
Terminou o Natal a data de todos os encontros…o da família, o do amor, o da paz espiritual, o de esquecermos os nossos inimigos e de extravasarmos toda a solidariedade social escondida durante o ano. O de sermos todos bonzinhos porque nos desdobramos em actos de simpatia para com o próximo, numa urgência evidente de lavarmos a nossa própria alma de todos os pecados que ao longo do ano o nosso egoísmo animal vai cometendo. Um apôs o outro, contra tudo e contra todos, esculpindo o nosso futuro como se o mundo fosse por direito divino apenas nosso e de mais ninguém. Então promovemos o sorriso puro e dócil das crianças, a principal sofredora da sociedade que construímos, porque se a nós adultos, o futuro nos foi retirado, a elas, na idade da inocência, o futuro está a ser-lhes negado, bloqueado. Então enchemos jornais de sorrisos inocentes, proclamamos a quatro ventos o quanto nos sentimos felizes por vermos crianças felizes, afirmamos aos microfones do mundo que lutamos diariamente por elas, numa hipocrisia sem limites que vem crescendo de ano para ano. Inversamente as organizações religiosas e as da sociedade civil desdobram-se num esforço titânico para dar cobertura, apoio, educação e comida em abrigos de sem tetos e sem futuro, que diariamente vão se multiplicando por esse país, Em Luanda e no interior, provando a velha lógica que contra a regra do desconhecimento e do desprezo continua a sobreviver a exceção da preocupação pelo próximo e pelo futuro.
Esse, infelizmente, é o nosso natal, onde poucos gastam fortunas em brinquedos e farras que não sobrevivem à ressaca do dia 26 e todos os outros, continuam a sonhar que é possível e a agradecer a Jesus o milagre da transformação do pão e do vinho, agarrados a pedaços de brinquedos semi destruídos e jogados por esmola no saco de uma pseudo solidariedade que não engana mais ninguém, a não ser a nós próprios e ao nosso cérebro interesseiro, egoísta e mentiroso. Natal apôs Natal fica cada vez mais evidente que construímos dois mundos, o do desinteresse pelo futuro porque nascemos e crescemos em berços de ouro que apesar de propriedade de todos nós apenas a alguns é dado o direito do usufruto e o da necessidade de mudança alimentado pela nossa própria incapacidade de redistribuir de forma justa. Mergulhados numa cegueira total ignoramos os sinais e julgamo-nos todos poderosos, quando afinal todos nós somos simples mortais, incapazes de controlar o amanhã quando fechamos os olhos definitivamente e deixarmos os nossos impérios frágeis como barro a mercê da justiça das grandes multidões. E aí torna-se tarde para clarificar sinais ou dar o feito por não feito. Aí torna-se tarde para a procura de equilíbrios ou para salvarmos o pouco de bom que conseguimos fazer. Aí torna-se tarde para recuar no tempo e desviar a direcção do túnel. Aí torna-se tarde para que no próximo Natal possamos todos, fechar os olhos e agradecer a Deus ou aos nossos próprios atos, a luz iluminaria do caminho da felicidade coletiva e da justiça social.
Mas hoje terminou o Natal de todos os encontros. Tempo de colocarmos a mão na consciência e começarmos a trabalhar para o próximo, porque de novo, Jesus Cristo, no seu berço de capim da manjedoura lá estará deitado, numa situação material de pobreza total, a espera que a gente o encontre e que através dele encontre a nossa própria consciência e como tal a capacidade que todos temos de confessarmos os nossos pecados e de nos redimirmos. E isso significa que nunca é tarde para mudarmos o rumo dos acontecimentos, nunca é tarde para provarmos que é possível transformar o nosso pequeno sítio numa gigantesca praça de amor e felicidade coletiva, onde todos os dias é Natal.
A poucas horas atrás, a minha filha de seis anos de idade, com a boneca nas mãos, já sem braços e sem pernas, fruto das verdadeiras experiências científicas que a longa noite de Natal provoca na curiosidade das crianças, perguntou-me triste se hoje os adultos iriam tornar a encher a árvore de Nata de brinquedos. Respondi-lhe que não porque o Natal já havia terminado. Olhou para mim de soslaio, deu-me as costas e a meio do terceiro passo soltou a exclamação de que era tão pouco e tão rápido. Sentei-me aterrado e pus-me a pensar como ela tinha razão e como o nosso egocentrismo adulto, movido pela febre da posse e dos bens materiais não nos deixa perceber que afinal os nossos filhos apenas querem que a nossa atenção e o nosso carinho se desdobre ao longo dos 365 dias do ano.
DC
26/12/2014
Sem comentários:
Enviar um comentário